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O Homem polvo – foi

março 14, 2021

Quatro e meia da tarde e Ela entra pela porta, voltando antes da hora, já isso estranho, com olhar esquisito, logo dizendo: Homem polvo morreu!

Morreu! Morreu como?!, respondia querendo algo real.

Era Verdade.

A morte cheirava seus corpos. A notícia ruim acerta logo, em cheio, no meio da testa da gente que nem piscar dá.

Saímos em busca dos falantes dos fatos pra ouvir mais dúvidas, nenhuma ação.

Homem Polvo foi pro mar, segundo as bocas, por voltas das 13 depois de voltar de caíco da traineira. Estava perto do pessoal rindo das brincadeiras da roda e e e e……

Boiou! Boiou longe! Boiou até que os guardas vidas o encontrassem e o trouxessem de volta à praia. Soube que tentaram reanimá-lo.

Não reagiu.

Na dúvida do que faziam com o corpo desse gentleman pescador amigo camarada educado Homem Homem polvo, pedalamos pro hospital geral. Na passagem pelo centro da cidade vimos uma senhora esticada no chão da avenida, em cima da faixa, com a multidão esperando as cenas. No hospital foi que conseguimos avaliar o que imaginávamos logo nas primeiras palavras do atendimento: não sabíamos nada dele [ou algo assim}. Um corpo sem documentos num hospital em plena pandemia indo pro IML constando na ficha “sem identificação”. O Amigo indo pro cemitérios dos Indigentes.

Não! Chegamos na hora. O guarda que encontramos na porta do necrotério, na entrada da pedra, da pedra fria onde sacos tem corpos, agradece por chegarmos pra falar o nome dele. “Vocês são uma luz!”

A sra. Assistente Social abriu o saco pra mostrar um Homem polvo longe daquele homem de risadas tão alegres que zumbirão pra sempre.

Era ele com algodões no nariz.

Anota aí na ficha, debaixo de sem identificação, Renato Vianna Alves, filho de dona Marlene, nascido em Niterói, sua nikiti. Pescador. Brasileiro em situação de rua. Festa de aniversário em 7 de setembro.

Conseguimos uma identificação mas não havia provas documentais, e o que dizíamos deveria ser levado à polícia já que o médico do hospital não havia identificado a causa mortis. Renato foi socorrido pela ambulância do Hospital Geral. Deu entrada sem vida. A informação recebida foi de que o atestado de óbito seria emitido pelo IML com a análise de um legista. Ninguém respondia o “Morreu como?

Na delegacia, a 132ª.

A campainha chama o inspetor que aparece no segundo chamado. Destranca a porta de vidro e vamos nós pra dentro da DP, na maior deprê, pra falar de você, amigo Polvo.

O inspetor rápido liga a máquina, digita as dicas que demos, dá um enter, logo Renato, Marlene, seu pai, duas fotos dele e tal e tal coisa na papelada do Estado. Pronto. Outro prontuário pedimos que aprontes.

Soubemos que seu corpo seguiu pra Macaé. A família deve reclamá-lo. O Estado guarda, aguarda mas não espera uma vida eterna, uma hora enterra.

Por hoje já se foi. Amanhã veremos.

(…)

Um dia sonhei que estava num ônibus lotado indo pelas ruas da cidade numa manhã de trabalho pra geral. Estava sentado num banco do corredor e via os corpos de baixo pra cima nas suas aflições de se manterem seguros porque o motorista não aliviava nem nas curvas. Estamos naquele vai e vem danado quando cai do teto um polvo bem pequeno, do tamanho da palma da mão. Estava molhado. O susto foi pra todos mas ninguém pulou do veículo em movimento. A barulheira veio do vozerio com cada um dizendo uma coisa diferente sobre o animalzinho que ficava ali com os olhos estatelados. Peguei o bichinho quando o motorista resolveu parar o veículo num ponto. Desci e vi duas saídas quando a porta se abriu. A turma que ficou dentro insistia que eu tinha que fazer isso ou aquilo. Olhei e vi o que seria esse ou aquele. Do outro lado da rua o mar crescia na areia da imensa praia e do lado de cá, perto do ponto, das pessoas, dos carros, do pipoqueiro, da banca de jornal, um bueiro de águas pluviais e sua boca de lobo. De dentro uma votação já ocorria com seus lados em pleno debate. O motorista esperava a decisão da assembleia sem falar nada, ou pouca coisa, ou coisa nenhuma. Descansava as pernas e lixava as unhas.

Joga aí mesmo! Era o voto de muitos pedindo que colocasse o polvo na boca do lobo, dentro do bueiro e que sua sorte o levasse de volta à baía. Do outro grupo vinha a certeza de que o polvo deveria ser levado ao mar, tratado com carinho e respeito. Nós não votamos, o polvo e eu. Ficamos olhando e ouvindo o que a massa, a maioria, a participação popular decidiria sobre nossos destinos. Atravessar a rua, andar pela areia e deixar as ondas beijarem meus sapatos ou olhar pra baixo e deslizar o polvo pela escuridão das tubulações públicas.

(…)

De volta ao nosso amigo Homem polvo, encontramos no amanhã uma esperança de dias eternos para nosso amigo camarada. Conseguimos falar com a organização popular do bairro que ele nasceu, cresceu e viveu por toda vida. (Arraial era um descanso passageiro.) A voz companheira de Adriano Felício, nas suas mensagens de carinho, nos confortou: – conheço Renato, Renatinho, amigo de longas datas. Falamos com sua filha e fizemos o que tinha prometido a ele semana antes do seu falecimento. Enviamos a última foto dele para sua mãe. Um belo sorriso de um homem brasileiro que soube conquistar pessoas com sua educação, cultura, sabedoria, bondade, carinho.

– Cadê o pequeno! Leva isso pro pequeno! O pequeno é nosso garoto de 13 anos que se amarrava em chegar perto de Renato, nas manhãs que íamos ao paiol dos pescadores para trabalhar com o mestre Harildo na sua oficina escola naval construindo miniaturas de canoas de boçardas, e falar por trás dele: Hoommeeemmm povoooo! Renato ficava zonzo por uns dois segundos e soltava aquele engraçado sorriso.

Valeu, companheiro!

Na Paz

07/02/21.

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