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(O Rio continua lindo) ou (Rio, cuspe, mijo, fezes)

julho 8, 2022

Um dia desse, Ton Etto saiu pelas ruas do Rio procurando sua namorada perdida depois que a ligação do celular caiu, foi interrompida, perdeu o sinal. Depois de 300 tentativas, ele pulou da sua poltrona Sergio Rodrigues para a rua com os olhos esbugalhados de medo. Dizer que foi pra rua é meio esquisito porque os pés calçados nos italianos novos saíram do brilhante piso de peroba – ah! as perobas dos campos da Mata Atlântica agora jazem cerradas, polidas e esticadas nas salas da Vieira Souto – e foram direto para o tapete do carro. Literalmente, Ton não havia colocado os pés na rua, no chão da cidade feito o trabalhador que pisa o chão da fábrica, o vaqueiro que caminha no chão do curral, a trabalhadora doméstica que pisa o chão da rua de terra batida. Sr. Etto não tinha o chão aos seus pés, pensou a nuvem que corria pelo leste. Assim vendo, lá vai o homem rodar a cidade na procura por sua princesinha amada idolatrada salve salve. Ele andou pelos batelocais da galera, onde os habitués, os locais, os crias tinham  acesso amplo, irrestrito e tudo mais. Sou Sul, pensou o agoniado homem solitário. Agonia não olha a cara nem o coração, nem o chinelo nem o cartão. Pode visitar qualquer um, basta estar vivo. Mas nada da fofinha querida além de ilusões e ilusões perdidas no ar condicionado do automóvel voador.

Lá vai o colega Ton e nada dela, a deusa, aquele pitéu, um quitute, manjar dos deuses. Flanou pelo Arpex, correu pelo 12, saiu na Elisabeth, desceu a Barão, beliscou pelo Satyricon mas nada da danada da figura querida. Oh vida! Por que faltei tantas aulas? Por que não dei mais ouvidos aos meus mestres? As vezes, ele a chamava de Alma; outras vezes, Maravilhosa.

Pois é! O cabra estava encalacrado com a disputa pelo tempo que passava minando o espírito e o corpo, enrugando a testa, corrompendo o coração. Será que ela foi comer empadinhas e se engasgou com o camarão? Sabe como é: camarão que dorme na praia a maré leva. Será que ela foi embora…

Ton Etto não desanimou e pediu ajuda ao primeiro que encontrou para procurar a digníssima. O man disse que podia sim mas tinham de bater pernas pela rua. Não tinha jeito não, seu moço. Ton concordou e rapidamente desceu do carro, trocou o casaco, colocou um boné, pensou na muié e saiu pelas ondas da cidade. Rodaram por Copa. Vão eles pelo espumeiro da praia procurando pistas da danada desaparecida. Já é de manhã e cruzam com uns 200 cachorros brincando na areia antes de encontrarem Clarice, sentada esperando os dois lá no seu cantinho com o seu cão. Caminhar até lá pra Ton foi punk. A careca sentiu, as pernas sentiram, a coluna sentiu o peso da barriga macia. Água de coco pra hidratar porque temos mais pela frente, sussurra ele ao Sancho, amigo camarada dessas horas ingratas. Solve et coagula. Pulou num assombro o Sir Ton Etto ao jurar que a estátua tinha soprado essas palavras em seu ouvido. Juro, juro, juro. Jurou de pés juntos, olhando pro céu e com o boné à mão.

Vamos que vamos, amigo. Vamos sair daqui. E saíram pela areia linda até Ton, já descalçado dos italianos, pisar com o pé direto num cocozão de cachorro. Plast! As fezes cobriram os dedos e saíram por cima da unha do dedão. Aquela massa marrom cheia de uns pedaços de coisas estranhas pintou os brancos pés do homem. A sua sorte, diga-se de passagem, é que as moscas varejeiras verde-azuis levantaram voo rapidinho. Putz! Vai homem lavar logo essa porcaria toda no mar que quebra na praia. Vai que não tá bonito. Olha aí as moscas estão zumbido atrás da comida delas. Que sorte que temos toda essa água na cidade, sorriu quieto o Etto. Lavou os dedos mas os olhos continuariam por muito tempo sujo com aquela meleca gosmenta canina. Quando ele se virou, saindo dos beijos das ondas, com os pés brancos, veio umas sacolas de plástico esquisitas grudar na canela. Saco de lixo, de pó de café e um daqueles absorventes higiênicos grandão. Este foi mais difícil de arrancar porque era pesado, tinha muita água nele e os dois homens bobeavam pra segurar a peça. Maré vem, maré vai, e nada do troço sair. Sorte de Ton que sua perna era careca, nem um fiapo de cabelo, ele raspava tudo, depilação importada, coisa chiquérrima. Foi! Gritou ele quando o pedaço do absorvente deixou seu corpo. Ufa! Viva! Consegui. Vamos sair daqui. Os dois falaram ao mesmo tempo. Harmonia total.

Então, sem pensar mais no trampo da praia, resolveram seguir pela Princesa Isabel em busca da famosa namorada. Foram pro RioSul à pé mesmo. Ton já se sentia pleno caminhante da urbe. Um verdadeiro pedestre. Daqueles que usam a faixa e ajudam os idosos a pularem os buracos das calçadas. Atravessaram o túnel, quando chegaram ao RioSul algo estranho aconteceu. Ton viu, ou ao menos achou que viu, a desaparecida do outro lado da rua. Só podia ser ela. Correram pra passagem de pedestres sem aviso do que encontrariam. Pararam logo na entrada. Havia protocolos para passarem por ali. Tinha de respirar fundo e prender a respiração até sair do outro lado ou tampar as narinas com a camisa ou resgatar as velha máscaras corona. Foram com os pulmões cheios pelo caminho fétido de tanto mijo, xixi, urina e tudo mais. Tinha fezes, não muito, algumas espalhadas pelos cantos que davam pra vê de longe, algumas duras, outras moles, bem moles, parecidas com aquelas de diarreia brava. Eram essas as armadilhas que não se podia pisar nunca. Aguentaram bem o caminho com os aromas humanos. Saíram do túnel dos cheiros pra avistar um vazio infinito. Nada da amada. O homem já começava a ter vertigens, pedindo ajuda aos céus, clamando pela intervenção divina. O talentoso Ton Etto desmoronou da sua bacana vida. Nada teria mais valor nem preço naquele mundo real da cidade encantada sem a complexa presença dela. Minha gata!, suspirou no vácuo.

Tiveram uma ideia. Uma tempestade passou pela cabeças dos dois sujeitos perdidos numa manhã fétida. Partiram pra Central. Ali sim seria a última cena das buscas pela desaparecida. Pularam num amarelinho. Pediram pressa ao motorista que respondeu pisando no pedal sem frear um instante sequer. Foi que foi pelo Aterro, cruzou por dentro, pela Lapa – sabe como é! – Cruz Vermelha e pelas cotias do Campo de Santana e, num breque, Central. Tá legal, doutor! Ton passou o lobo guará. Pularam correndo pela ruas da estação atrás do sonho de cabelos dourados, mente sã, sorriso bonito, olhos sapecas. Ton recordou que o celular dela tinha marcado essa localização por algum motivo que ele desconhecia. Tinha de encontrar alguma pista. Saíram pra lá e pra cá pulando poças de mijo, mendigos e trapaças. As mulheres e os homens em sua multidão nem percebiam aqueles dois quando seguiam pros quatro cantos da cidade. Pressa. Tou com pressa. Sai da frente que atrás vem mais e mais e mais gente.

Sir Etto tinha uma personalidade especial construída com muita pesquisa de ponta. Ele ativou a função Inteligência Artificial (AI in english) no seu EU interior. Não sentia por sentir mais nada. Tinha uma visão programada com saídas conectadas por processos transumanistas aplicados em 6G. O homem era um homem do presente. Coisas de gringo Born in Brazil: nem senciente, nem consciente.

Ton Etto et E não encontraram a mulher. Ton, o senhor educado, homem fino, bacana e sincero, um lorde, um grã-fino, não aguentou tanto desgosto. Sentiu gosto de caviar. Olhou pros lados, pro amigo e não pestanejou: cuspiu bonito no meio da rua. Uma  super, longa, babenta cusparada, daquelas do fundo da alma. Totalmente podre.

A escola está aberta por tempo indeterminado. Senhores pais, mães e responsáveis procurem ajudar tuas filhas e filhos nos estudos.

Ton, coitado, ficou no meio do caminho. Pediu um carro e saltou no Pinel. Trocou de City. Mudou o visual, fez correção labial, comprou um animal, se encantou pela medicina tradicional. Coisas da vida, afinal.

Fábio Gomes

7-VII-22

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